top of page

A manipulação do poder.

Em um reino distante e gelado havia uma linda princesa que era almejada por todos os jovens, nobres ou não. O Rei, considerando-se capaz de manipular todas as coisas sem que o povo conseguisse enxergar e ainda querendo gerar uma renda para manter os altos custos do reino, anunciou que casaria com sua filha, e seria consequentemente o dono do trono quem pagasse o valor alto da inscrição na disputa e passasse uma noite, acordado e sem agasalho na geleira que ficava ao lado do castelo e sobrevivesse.

Muitos pretendentes morreram. Muitos jovens do povo eram enviados com inscrição na disputa financiada pelo povo na esperança de vencer o poder tirano do Rei, mas não resistiam. Não era justa aquela disputa, mas o prêmio parecia valer a pena, afinal não era só a mão da linda princesa, mas o domínio do próprio reino.

Um jovem plebeu apareceu para enfrentar o desafio pagando a inscrição com a ajuda de toda a comunidade, afinal era hora do reino pertencer ao povo que realmente fazia ele existir, e ainda ganharia o amor da princesa que já ansiava por algum vencedor, pois queria muito se casar.

Quando amanheceu, para surpresa de todos e do rei o jovem sobrevivera ao frio extremo. Mas não era um nobre e neste caso o rei ainda perderia o controle e financiamento do reino! O rei então tratou de tentar manipular a situação. Fez uma pergunta que tinha preparado por todos aqueles anos: Diga-me, você dormiu durante a noite? Não, respondeu o vencedor do desafio. Como vamos saber? Perguntou o rei. O vencedor falou: eu vi que por volta da meia-noite acendeste uma vela no palácio que permaneceu até o amanhecer. Com essa reposta o rei falou: ah, então é por isso que sobrevivestes! Foi o calor da vela na janela distante do palácio que te aqueceu. Não podes casar e herdar o reino, pois trapaceastes.

O homem não tinha como lutar contra o poderio do rei. Saiu deixando para trás uma princesa também muito triste.

O tempo passou e todos tinham esquecido o acontecido quando o amanhecer revelou uma estrutura muito alta bem embaixo da janela do palácio, com pedaços de carne lá no alto e uma pequena vela acesa embaixo.

A cada minuto alguém gritava: vira a carne! Não deixa esta carne queimar, pois ela é doação para o almoço do rei!

Estes gritos transcorreram por longo tempo, até que o rei saiu na janela e viu aquela situação e desceu incomodado com a gritaria, mas também por ver que aquele povo ali embaixo era muito bobo, e ele ira ensinar mais uma lição.

Ao chegar perguntou por que tanta gritaria, sendo informado pelo jovem (o mesmo que tinha vencido o desafio da geleira), que estava tentando assar aquela carne para o almoço do rei, mas estava tendo muito trabalho para não deixá-la queimar.

O rei deu uma gargalhada e pensou que tinha feito bem em não doar a mão de sua filha e o seu reino àquele bobo e aproveitou para dizer: “não estás vendo que esta pequena vela desta distância nunca vai nem aquecer aquela carne, muito menos queimá-la ?”

O douto plebeu respondeu: “vai sim. O Senhor não falou que eu fui aquecido na geleira pela luz de uma pequena vela acesa na janela ao pé do palácio, muito mais longe de mim do que esta que tenho acesa longe da carne? Então o senhor vai ter que esperar esta carne assar para poder comê-la.”

O povo que assistia aplaudiu o plebeu, que também foi aplaudido pela linda princesa que a tudo assistia da janela e o rei se viu sem saída e aceitou o casamento e assim o jovem plebeu assumiu o controle do reino. Era a vez do povo que tinha financiado aquele desafio com muitos sacrifícios.

Este texto acima é para lembrar que estamos às vésperas de eleições gerais. Parece que o povo vive financiando uma estrutura política e ainda tendo que se sacrificar o tempo todo sob a promessa de que assim, um dia, algum felizardo vá ganhar o grande prêmio de usufruir do que produz e ainda mais, vai conseguir controlar o meandros do poder e gozar das riquezas e prazeres da pátria.

Mas que ilusão!

Sempre que alguém parece conseguir um caminho a construir uma identidade onde os financiadores sejam de fato respeitados e ouvidos em suas reivindicações, quem detém o poder legal sempre arruma uma desculpa e uma negativa baseada em fundamentos e artimanhas não verbalizadas anteriormente.

E o povo de candomblé?

Cremos em divindades que tem a natureza ligada diretamente à justiça e a causas sociais, como por exemplo Nkosi, Ogum, Gun, Nzazi, Heviosso, Xangô, Luango, Wunji, e muitas outras que suas naturezas divinas perpassam sempre pelo coletivo e pela justiça coletiva, respeitando o indivíduo dentro da estrutura social.

Mas buscar no sagrado uma explicação ou uma esperança de que Ele vai agir e nós vamos ser beneficiados passivamente é uma grande ilusão.

Associar a disputa política a ideais religiosos também é uma grande cilada que a história nos ensina que não dá certo no sentido de garantir direitos coletivos e direitos humanos, que deve automaticamente alcançar os direitos de todos os seres de viverem em harmonia dentro de suas particularidades.

A disputa está posta.

Em nome da fé em um Estado que se diz laico, se faz defesas ferrenhas de temas que deveriam ser tratados somente no âmbito doutrinário da fé particular de cada um que a desposasse.

Querer gerar um Jesuscracia, uma Candomblécracia, uma Umbandacracia, ou uma Teocracia ligada a qualquer Deus ou tradição religiosa que seja, já não seria de fato democrático e os direitos pessoais e humanos, sejam individuais ou coletivos, já estariam comprometidos.

Direitos universais que envolvam a fé, a sexualidade, o direito de crer ou não crer, o direito sobre o corpo, o direito sobre a propriedade, o direito sobre os bens gerados coletivamente serem usufruídos por todos é o que deve ser perseguido.

Temos candidatos que professam nossa fé em todo o país. Alguns assumidos como professantes outros não. Mas votar em um de nossa fé só pelo simples fato de pertencermos ao mesmo ideal religioso não justifica e nem significa que é um voto consciente.

Por outro lado votar em alguém que declaradamente rechaça a fé de quem quer que seja como negativa e que entende que a sexualidade (algo pessoal, individual e inerente do ser) deva ser norteada por leis estatais com o respaldo de uma fé, gerando violência e exclusão também é ignorância.

Ter uma bancada identificada religiosamente no Congresso Nacional, por si só, já revela a falta de laicidade prática do Estado.

Usar a estrutura do Estado para defender valores teológicos e dogmáticos de qualquer religião que seja, é uma violência à laicidade do Estado e aos direitos humanos.

Votar em quem quer manter o controle do Estado a qualquer custo, financiado pelo povo, e sempre com uma carta na manga para na hora que alguém se legitimar ser desclassificado, é como manter a ilusão de que o Estado é de todos e pra todos, e que o que falta é que alguém vença o desafio para tanto, é agir como o rei da parábola acima, e ainda assim, quando alguém acreditar que venceu a noite escura da geleira, ser acusado de trapacear já que viu uma vela acesa a grande distância.

Então o que nos resta, como religiosos ou não, é pensar coletivamente.

Não interessa se um candidato se identifica como crente ou praticante desta ou daquela religião, mas o seu histórico vivido e comprometido com os direitos humanos universais, e com o indivíduo dentro da engrenagem do Estado.

Achar que negativar a imagem de uma religião ou de um grupo por sua fé ou sexualidade está certo porque estou apoiado por minha crença, é uma grande indicação de que este/esta candidato/candidata vai ter uma carta na manga quando chegar a nossa vez de reclamarmos o nosso direito, o prêmio do nosso esforço e ai vai exigir de nós uma organização e um esforço maior ainda para convencer e estabelecer o direito usurpado indevidamente sob a capa da legalidade ou da legitimidade religiosa ou de ideias que não comportam a diversidade da sociedade.

Vamos sim pedir aos Deuses e Deusas da justiça, mas sejamos nós os Seus instrumentos, tanto na hora de votar, como na hora de nos organizarmos para denunciar as violações de direito, seja por quem for, quando detiver o poder.

Vamos entender que o que queremos não é que um candidato nos garanta privilégios como praticantes de Candomblé ou Umbanda, mas sim um/uma que não garanta privilégio nem tire direitos a nenhum grupo seja religioso, seja sexual, seja regional, seja étnico.

Queremos garantias que todos e todas possam praticar sua fé livremente sem que a estrutura do Estado seja utilizada e direcionada a manter um preconceito institucionalizado contra grupos específicos;

Queremos garantias que possamos tocar nossos tambores sem sermos associados ao negativo nem que o Estado legitime essa perseguição. Ao mesmo tempo queremos a garantia de que qualquer pessoa possa praticar sua fé ou assumir que não tem fé nenhuma sem ser molestado pelas estruturas do Estado e que o poder policial e judicial esteja preparado para entender que violar o direito a fé de qualquer pessoa é crime. Chega de violação de templos afros em nome de uma fé cristonormativa apoiado por um Estado que deveria ser de todos/todas e para todos/todas, mas que na prática ainda se rende ao domínio de grupos religiosos históricos que estão diretamente ligado à dominação seja do poder, seja do capital!

Queremos garantia de que cada ser é dono de sua sexualidade dentro do consentimento entre pessoas capazes, sem que o Estado queira interferir e ditar com quem e como cada pessoa tem que gozar, e pior, fazer isso em nome de uma estrutura religiosa que é estranha ao Estado laico.

Queremos que quem violar o direito de um indivíduo que seja, de viver plenamente a sua sexualidade seja encampado por leis que considerem crimes tais violações e sejam estas leis colocadas em prática; Chega de crimes praticados em nome de uma sexualidade heteronormativa apoiado por um Estado que deveria ser de todos/todas e para todos/todas, mas que na prática ainda se baseia por normas religiosas e morais de grupos dominantes históricos!

Queremos que as leis que possam beneficiar os grupos em sua fé sejam para todos e todas. Se os templos podem ter suas terras legalizadas, que sejam templos de todas as crenças e não somente a que tem maior representação no poder e que detém o poder da mídia e de manipulação popular.

Se existem quaisquer benefícios dentro de uma estrutura social, que sejam legítimos e para todos e todas, independente da fé ou da inexistência dela.

Que sejamos conscientes nas nossas ações, especialmente na ação de votar, sem ter que um de nós ser sacrificado na geleira sempre que almejar uma mudança e ainda ser considerado burlador das regras quando sobreviver ao sacrifício imposto pelo poder.

É hora de pensar, rezar, agir, votar, protestar, e fazer com que nosso povo de matriz africana tenha visibilidade, e isso de maneira pacífica, como por exemplo indo às urnas vestidos a caráter, não para violentar ninguém (se alguém se sentir violentado é uma questão pessoal), mas como uma ação pacífica de visibilidade.

Temos sim várias opções de candidatos que são pessoas respaldadas pela sociedade e lançada na geleira social para ver se sobrevive e vence o poder dominador. Se é a vela que os/as pode salvar, que sejamos nós acender essa vela!

Cabe a você e a mim com a consciência divina que em nós habita e com a lembrança dos ancestrais que nos antecederam e que muitos deram a vida para sermos o que somos hoje, decidirmos que caminho tomar.

Que Tat'etu Nzazi/Luango, Baba Xangô, Doté Heviossô, Tat'etu Nkosi, Babá Ogum e Mam'etu Wunji seja pleno em nós na nossa luta e nos traga consciência de nossas ações!


bottom of page