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POSTULADO

Quando sai da Igreja Evangélica Assembleia de Deus em 1994, devido a incompatibilidade de pensamentos e concepção divina enquanto cursava Teologia (terminei em 1995) e conflitos entre o que eu sentia e o que o dogma me dizia, passei por muitos caminhos.

Fiz curso de massagens, shiatsu, do-in, meditação, astrologia, etc.

Li e participei de reuniões sobre os Mestres Ascensos (Chama violeta e ponte para a liberdade), conheci o Vegetal (ayahuasca), fiz um ano de curso e desenvolvimento mediúnico num centro kardecista, e li muito sobre o budismo, hinduísmo, etc....

Foram dois anos muito profícuos, neste entremeio, inclusive, enquanto cursava o Curso Técnico em Enfermagem, conheci um rapazinho (na época eu também ainda era quase um rapazinho) que pintava o cabelo de ruivo e muito espevitado, e começamos a nos relacionar, afinal, eu já estava liberto do medo de Deus e do dogma teológico da condenação (salvação pressupõe condenação e culpa) e podia viver minha natureza sem medo de Deus e sem me sentir hipócrita, culpado ou imundo.

Nesse relacionamento fui convidado para conhecer um terreiro de Umbanda e depois de Candomblé e a ideia de um Deus que dançava, era colorido e era muito parecido comigo e eu muito parecido com ele me encantou.

Parece que tudo que eu tinha estudado, lido, buscado e vivido me levaria àquela descoberta, porém não me acomodei. Li tudo que consegui. Entendi já de cara que o Candomblé não era uno mas diverso de acordo com suas origens, etc... O Rapazinho (que hoje é Babalorixá) era Abiã (não nascido, não iniciado, postulante, pretendente em uma casa de candomblé conhecido como ketu).

Um dia, lá por 1995 ele me disse vamos visitar Dona Judite(foto abaixo), uma mãe de Santo muito

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conhecida que tinha um terreiro no Sol Nascente (município de Luziânia/GO). Lá fomos nós. Era um dia chuvoso, mais ou menos novembro ou dezembro, e fomos nós. Descemos na parada e andamos um bom pedaço em direção às informações que tínhamos e perguntando, logo fomos direcionados para a chácara de Mãe Judite.

Ela nos recebeu como se nos conhecesse e foi jogar para o rapazinho, que se ele ler este ensaio e autorizar, direi o nome (risos). Eu ainda não estava maduro para tanto. Iria jogar só para ele, afinal já era mais adiantado no assunto, já trabalhava com uma Pomba – Gira ( Dona Maria Rosa) e Dona Judite (Oxalembá - que Nzambi não se esqueça dela entre os ancestrais ilustres!) nos mostrou a casa toda, com um amor e disponibilidade incrível. Nem parecia toda aquele peso hierárquico que eu tinha lido nos livros.

Quando abriu o quarto de Oxalá que despontou aquela visão branca de muitos véus e potes brancos o rapazinho sentiu algo diferente e saiu tombando pelos cantos e foi uma dificuldade para trazê-lo de volta, e eu sem entender muito, só acompanhava tudo e guardava tudo na minha memória, com os olhos disfarçadamente bem abertos como um bom caçador (viria saber mais tarde, mas já era a minha natureza divina).

Enfim, foram ao jogo e devido às situações ali visualizadas e orientações do oráculo, uma semana depois ele já estava recolhido e sairia como filho de Oxalá com Iansã. Nem eu nem aquele menino de fé tínhamos dinheiro, mas nem por isso Oxalá deixou de sair na sala. Eu ia toda semana e levava algo de alimento, ajudei como podia, mas só mesmo o sagrado sabe de onde aquela mulher tirou para que a obrigação acontecesse e aquele Yaô (iniciando/iniciado no candomblé de Ketu) fosse “feito”.

Eu já me engrenei na casa e tive minhas primeiras vivencias como Abiã, postulante, em uma casa de Candomblé.

Serviço não faltava.

A casa era longe e o ônibus nos deixava a uma distancia boa.

Fizesse chuva ou sol, eu estava lá.

Chegávamos mais cedo, ajudávamos a decorar a casa, ajudávamos na cozinha, louça para lavar, barracão para limpar, comida para fazer, etc... e lá estava eu, deslumbrado com tudo aquilo, e mais ainda encantado com o amor daquela mulher, que mesmo sendo uma das sacerdotisas mais conhecidas de Brasília e região, era simples, amorosa, doce e cuidadosa como deveria ser uma mãe, ainda mais quando revela a natureza doce de Oxalá, de quem era filha.

Quantas noites viradas ajudando, trabalhando, limpando, cuidando.

Era longe da pista e da parada de ônibus. Íamos andando e muitas vezes depois dos toques de candomblé Mãe Judite “virava a banda” tocando Umbanda, para poder esperar o dia amanhecer, pois ela não tinha estrutura para o povo todo dormir, e não tinha como irmos até a parada de ônibus pois era perigoso, então o remédio era continuar no culto, mesmo que em outra “banda”. Quando terminava, ainda íamos limpar o barracão para deixar tudo limpo e pronto, pois se alguém batesse na porta para ser cuidado, a casa estava limpa e receptiva, como no dia que cheguei lá pela primeira vez com meu ruivinho espevitado: tudo limpo, claro...

Enquadrei-me na programação da casa.

Ajudava financeiramente.

Sempre chegava lá com algo dentro das minhas possibilidades. Na época eu vivia de aulas de Inglês e já tinha uma filha pequena para criar. Eram tempos difíceis, mas a casa de santo estava entre minhas prioridades, pois eu entendia que ali era um espaço coletivo que deveria ser mantido por quem ali frequentava.

Ainda mais eu que vinha de uma estrutura religiosa onde fazia parte dos dogmas e preceitos doar 10% de todo o valor recebido (dízimo), além das ofertas. Não tinha problemas em ajudar e cuidar, pois se tinha luz na casa, eu usufruía. Se tinha água, eu usufruía. Se tinha comida, eu também usufruía, e tinha aqueles e aquelas que não podiam contribuir, mas deverias ser cuidadas do mesmo modo. Sabia que aquela fé, embora parecesse, não era cara, pelo menos não tão quanto a que anteriormente desposava, pois as despesas exigidas, eram usufruídas por quem convivia na casa. Era de uso coletivo mesmo e de sustento daquela estrutura sempre disponível a cuidar de alguém que precisasse.

Alguma coisa ainda me faltava. Era como se eu estivesse ali fazendo um estágio.

E só hoje vejo o tanto que Mãe Judite, a saudosa filha de Oxalá, que tocava Nagô Vodum (como ela dizia, mas que tinha elementos de várias tradições no culto que ela praticava) me influenciou e o tanto que aprendi com ela enquanto lavava as panelas, limpava o barracão, cuidava da roupa, depenava galinha, etc.

Ali senti as primeiras manifestações afro, diferente do contexto e conceitos cristãos que tinha vivido na Igreja onde manifestava o fenômeno conhecido como “Espírito Santo”, falando em línguas desconhecidas e profetizando, e também no Centro Espírita Paz, Amor e Caridade (que também me influenciou muito), que mesmo sendo espírita, é de referencial cristão.

Ali pela primeira vez senti a manifestação de um Exú, algo desconhecido por mim, com um olhar e um referencial moral diferente do ocidental não contaminado com a dualidade de bom X ruim, certo X errado, Deus X Diabo, etc.

Mas algo ainda me faltava.

Nas minhas leituras e buscas já sabia que o candomblé não era uno. Que era diverso de acordo com suas origens étnicas e ancestrais e sabia que tinha uma tradição que quase ninguém sabia nada, que não tinha nada escrito, e o que tinha passava quase sempre pelo referencial nago/yorubano, inclusive com grandes equívocos por parte da academia e quando ouvia falar de Angola, meu ser vibrava, como se me reconhecesse nesse nome.

Mas ali estava. Fui “oborizado” (como eu entendia na época) e já sabia que era filho de Oxossi e já sentia uma manifestação diferente em meu ser e em minha consciência e já tentava entender o que era aquilo, que era diferente de uma incorporação.

Já começava comprar o enxoval, quando disse para Mãe Judite que lhe amava muito, mas que não ficaria ali. Disse-lhe que procuraria uma “casa de Angola tradicional, com uma família tradicional para conhecer melhor.” Ela ficou triste, mas nunca tentou me prender. Não era da sua natureza, mesmo tendo uma fé simples e sem maiores elaborações. Continuei minha vida de abiã, cumprindo alegremente tudo que me era permitido e requisitado, na expectativa do próximo sinal do sagrado.

No final de 1996, comprando os itens da lista, fui até uma casa de tecido e materiais religiosos em Taguatinga/Ceilândia que nem existe mais atualmente (ali perto onde hoje é o Shopping JK), conheci uma pessoa de cabelos grandes, cara de Indio Xavante que puxou assunto comigo e se identificou como Tata de Nkisi. Eu, curioso que era, já sabia que era sacerdote de Angola, e ele me disse que a casa era no Jardim Ingá (eu morava em Valparaizo-GO). Conversamos, e no meio de uma chuva torrencial ele me ofereceu uma carona, e eu nem fui para minha casa (como bom caçador, livre de compromisso, vai para onde o vento soprar – risos), fui direto para o terreiro, que estava com Muzenza recolhido. Era um Gongobira.

Nesta altura já não namorava mais o Yaô de Oxalá, embora mantivéssemos uma amizade, cuidado e respeito próprios de quem se respeita e se ama, independente do tipo de relacionamento que é mantido.

Naquela noite fiquei no terreiro e conversei muito com o Sr. Gilberto, que me disse que sua djina (nome iniciático dos Angoleiros) era Tata Atirezim.

Era um outro mundo.

Uma outra cultura.

Diferente de tudo que havia lido, daqueles conhecimentos repetidos e muitas vezes folclorizado por livros e pelos que se julgavam entender do assunto dos Orixás. De Nkisi não tinha nada escrito mesmo – risos.

Era Nkisi/Mukisi, o caçador já era Mutalambô, etc....

Naquela semana já fui à casa de Mãe Judite e lhe disse que, como já tinha lhe falado, iria me ausentar da casa, pois iria em busca de algo que meu ser se identificava, a cultura do candomblé de Angola.

Já ajudei na Nzo Nkenbensara durante as obrigações. Claro que só no lado de fora. Só depenando galinha até de madrugada. Só limpando barracão. Só lavando louça, só ajudando no preparo da comida, etc.. até porque a estrutura era muito mais fechada para a participação de não iniciados. Mais tarde vim descobrir que é um dos traços das casas de Angola serem mais fechadas em seus ritos, o que se justifica pela história e também a manutenção de várias tradições sem a exploração de acadêmicos.

Agora tinha virado Ndumbi: postulante, no terreiro de Angola.

Quantas louças lavadas.

Quantas roupas lavadas.

Quantas vezes o barracão foi lavado, limpo e arrumado.

A rotina eu mantive: pagava minha contribuição mensal e sempre que ia levava alguma coisa, afinal a estrutura também ali deveria ser mantida pelos que ali se congregavam. Tudo gerava despesa: água, luz, alimentação, etc....

Nesta época eu já tinha passado num concurso no Executivo, e assumi só pela “segurança” pois o salário era menor do que eu ganhava como professor de Inglês, mas trabalha somente seis horas (bom tempos), o que me possibilitou participar ainda mais das atividades da roça, fosse de Candomblé ou Umbanda.

Um ano de postulado, com momentos maravilhosos, outros nem tantos.

Horas sem fim de ônibus (naquela época a pista ainda não era duplicada até Luziânia. Os engarrafamentos no trânsito eram intermináveis. Quando eu ia ajudar na roça durante a noite, cinco da manhã eu tinha que está na para de ônibus!

Certezas absolutas e dúvidas infinitas!

Amores e desamores na casa de Santo, como é comum a toda agremiação humana. Mas era um tempo que sentia que quando um mais velho dizia que eu não podia participar de algo, era por proteção.

Eles se importavam comigo, afinal eu não estava pronto e nem maduro.

Tudo fora de hora é aborto.

Participar do que não estava pronto nem tinha sido preparado para, poderia gerar desequilíbrio em mim, na estrutura, e acima de tudo, poderia gerar falsa ideia de conhecimento da tradição.

Uma coisa eu tinha certeza, independente do reconhecimento ou não, era de que minha presença era importante, e para mim era importante está lá, mesmo que fosse somente para limpar, lavar, depenar galinha e no dia da festa colocar uma roupa de ração simples e ficar quase o tempo todo abaixado... eu estava lá!

De alguma forma aquela estrutura funcionava com minha energia e eu me sentia importante, independente do “reconhecimento”.

De cara entendi que a proposta do Candomblé e a ressignificação de família a partir de uma perspectiva espiritual vindo de um momento histórico que os antepassados africanos não eram ninguém. Não tinham nem nome (eram “da Conceição” “De Jesus” “Dos Santos”, etc.), e o candomblé dava novo significado com novo nome e com status dentro de uma estrutura de fé.

Eu era postulante de uma fé de resistência e que me abraçava como eu era, então era natural abraçar os outros como eles/elas eram, sem excluí-los.

Participar da primeira saída de Muzenza (muito diferente das saídas de Yaô que havia participado) me encantou, ainda mais por saber que toda aquela beleza tinha participação minha. Se os iniciados e o corpo sacerdotal puderam se dedicar aos ritos, era por que eu fiquei lá fora cuidando e ajudando nas coisas práticas da roça, e não menos sagradas, como cuidar da comida, da louça, da roupa, da limpeza, de depenar galinha, etc....

E no meu coração eu sabia que agradava alguns e desagradava outros, mas eu estava fazendo pelo sagrado e por mim e por todos e todas, até mesmo pelos desagradados.

Como Ndumbi eu era parte daquele todo!

Com sacrifícios me consegui me programar e numa sexta feira de agosto de 1997 sai direto do serviço com a mochila nas costas e fui pra roça para o inicio dos ritos de recolhimento e formação do barco que tinha mais uma pessoa de Katendê e uma de Lebarenganga, além de um Tata Kabono e uma Makota.

A saída foi dia 06 de setembro de 1997.

Veio a fase do preceito, que antes da iniciação só parece romântico e belo, mas na hora de viver não é fácil. Todos os nossos fantasmas e medos e fraquezas e inseguranças vem à tona, mas agora com uma natureza divina individualizada em nossa mutuê (cabeça, ser) consegui vencer esta fase. Sabia que nunca mais estava só!

A diferença é que agora como iniciado participava dos ritos, mas em determinado momento precisava ficar de apoio fora também, fosse lavando, limpando ... a rotina era a mesma, só que agora com a doce presença de Tat'etu Mutak'lambu'lunguzu (o caçador que veio do alto) e do arteiro mona ndenge (criança, wunji) o Rouxinol.

Com toda a dificuldade o mundo era lindo e maravilhoso e bom pra se viver, não que ele tivesse mudado, mas a minha mutuê, o meu ser tinha mudado.

As dificuldades eram as mesmas, as carências, as necessidades, etc., mas eu não era o mesmo.

Vieram as obrigações de um ano, três anos (e como anúncio do que me aguardava já pude, a partir dali consultar o oráculo e atender pessoas), por fim, em 2005, com sete anos de iniciado, já completando os oito), consegui comprar o terreno onde hoje é o terreiro Tumba Nzo Jimona dia Nzambi, a casa dos filhos e filhas de Deus, onde sou serviçal.

Também fiquei sem carro, e ia de ônibus. Descia todo aquele espaço a pé, com sacolas nas costas, cal para começar pintar o pequeno espaço que era construído, e tinha a companhia do Robinho, o meu amado na época.

Quantos finais de semana comendo miojo com linguiça preparados no fogareiro de álcool!

Vida vai e vem e em 2007 a casa foi formalmente inaugurada como casa de candomblé e eu consagrado como Tata (embora desde 2005 já viesse tocando Umbanda). Era uma varanda de maderite, mas pra mim era um espaço lindo e sagrado!

No total foram 11 anos com Tata Atirezim, e independente da idade de Santo sempre estava lá lavando louça, limpando barracão, depenando galinha, virando noites na obrigação e indo direto para o trabalho e vice-versa, sempre no entendimento de que eu era parte daquilo tudo e que tudo que ali acontecesse era também de minha responsabilidade.

Pronto!

Agora eu era Tata!

... continua na próxima semana


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